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segunda-feira, setembro 17

Comida de laboratório

Acompanhamos uma aula sobre gastronomia molecular e entendemos por que os restaurantes que servem pratos elaborados com essa técnica estão entre os mais disputados do mundo.
Bruno Senna/Esp.EM
A hora do almoço se aproxima e o trânsito de São Paulo, ao contrário dos motoristas, parece não ter pressa alguma. Estamos a caminho da refeição mais importante do dia. No campus Anália Franco, da Universidade Cruzeiro do Sul, somos orientados a usar toucas descartáveis na cabeça ao entrar onde o chef Kaká Silva, proprietário do GastronomyLab, ministra um curso para 28 alunos interessados em aprender as técnicas da gastronomia molecular. 

O ambiente que nos cerca é de um branco estonteante com fartas janelas para entrada de luz. Todos vestem aventais brancos e assistem ao chef pulverizar sobre pedaços de carne crua um pó branco que promete grudar proteínas, formando uma liga e unindo toda a carne em um único rolo para futuro preparo de deliciosos bifes macios.
 
O pozinho mágico é feito de hidrocoloides (também conhecidos como “goma”), que permitem criar quase qualquer forma e atingir qualquer textura sem comprometer o sabor da comida. E o contêiner que eu havia avistado embaixo da mesa, logo na entrada, armazenava nitrogênio suficiente para fazer uma festa de fumaça. 

A primeira impressão que fica é de que entramos num laboratório de experiências científicas surpreendentes. E a última, de que é exatamente isso o que acontece. “A gastronomia molecular é a introdução de novos ingredientes, novos equipamentos e uma visão realmente crítica da cozinha”, explica Kaká Silva. 

O que na visão de muita gente parece magia, na gastronomia molecular é o conjunto de técnicas estudadas para compreender os fenômenos físicos e químicos que acontecem no simples ato de cozinhar um ovo, por exemplo. Ter o controle do que se está fazendo dá liberdade ao chef para criar na cozinha, com a segurança de saber exatamente o que acontecerá. Por esse motivo, deve-se ter o cuidado de não passar dos limites. “Sei exatamente o que acontece, então fica mais fácil atingir essas pirotecnias da cozinha. Ao mesmo tempo, a gastronomia molecular pode ser extremamente perigosa. Você se torna quase um mago, e a fronteira entre fazer uma bela coisa e outra de mau gosto é muito tênue”, destaca. E qual seria esse limite? “O limite é ter amor pela cozinha, além de conhecimento. Respeitar os alimentos, os ingredientes e as pessoas para qual você cozinha”, responde Kaká.
 
Bruno Senna/Esp.EM

A gente não quer só comida

A comida gostosa da vovó sempre terá o seu lugar em nossos corações, principalmente em tradicionais domingos de família. No entanto, quando investimos pequenas fortunas para bancar um jantar num restaurante, esperamos que o “algo a mais” não venha só do tempero.

 Pagamos pelo prato fino, pelo ambiente, pela música, pelo atendimento e por toda a composição que agrega valor na conta final daquele restaurante bacana. Atualmente, entre os mais caros e conceituados restaurantes do mundo estão aqueles que utilizam o suporte das técnicas da gastronomia molecular. Com perdão do trocadilho e licença poética, isso só pode ter uma explicação: a gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte, tudo no mesmo prato.

A possibilidade de mudar textura, cor e estrutura dos alimentos pode parecer futurista. Mas, na verdade, a gastronomia molecular surgiu em 1988, quando amantes da culinária se reuniram com os cientistas Nicholas Kurti e Hervé This, propondo um estudo aprofundado dos fenômenos envolvidos na arte de cozinhar. Foi mais uma das revoluções do início do século 20, rompendo com paradigmas tradicionalistas.

“As pessoas estão cada vez mais interessadas no que eu chamo de aventura culinária. Esses restaurantes [de gastronomia molecular] são muito concorridos, e a explicação é simples: uma experiência divertida, uma refeição lúdica”, pontua Kaká. O prato minimalista de caviar verde exposto no balcão do laboratório pode ser comparado a uma obra de arte, com uma vantagem: além de se observar, pode-se degustá-lo. A quebra de expectativa é que o caviar é de mentirinha. Ele é verde porque é feito com o vegetal usando a esferificação, técnica muito comum da gastronomia molecular, que aprisiona todo e qualquer líquido em uma película esférica.
 
Bruno Senna/Esp.EM
 
 
“Ao contrário do que muitos pensam, nós não usamos ingredientes da indústria química nem conservantes. É tudo de origem natural. Mas entendo que usar nitrogênio na cozinha possa parecer estranho, já que antigamente ele só era visto em laboratórios”, explica Kaká, que defende a técnica a qual se dedica a ensinar. “A única diferença é que o conhecimento científico aplicado na cozinha me permite ter mais controle do que estou fazendo. Acredito que a culinária seja a última arte modernista, e a gastronomia molecular é uma cozinha totalmente artística”, diz.

Finalmente, livres de qualquer receio, vamos à sobremesa. Para finalizar a aula, o chef traz o barril de nitrogênio, despeja a fumaça branca numa tigela e, em menos de dois minutos, um sorvete incrivelmente delicioso e cremoso. “Parece um truque de mágica, mas deixar o empirismo de lado é perceber que cozinhar é mais do que seguir uma receita. O conhecimento só simplifica”, ressalta Kaká, com o rosto nublado de N2.

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